segunda-feira, 23 de julho de 2012

Serra da Saudade


A menor cidade de Minas Gerais e seus personagens

Chegar a Serra da Saudade não foi fácil. Não que o caminho fosse longo e sinuoso, não é isso. Dois viajantes um pouco distraídos e a nossa noção geográfica não tão boa ajudaram a atrasar nossas previsões. Poucos carros em direção à cidade denunciavam que estávamos mesmo indo para um lugar completamente diferente de tudo o que vemos nas cidades grandes, com toda essa correria desenfreada que agrada a muitos, e em outros tantos coloca na cabeça uma ideia contestável de progresso.

Serra da Saudade, a 270 quilômetros de Belo Horizonte, é a menor cidade do estado em número de habitantes, com 815 moradores – segundo o Censo do IBGE/2010, é a segunda do país, só perdendo para Borá, no interior paulista, com 805. Em fevereiro de 2006, os Rolling Stones fizeram um show histórico no Rio para 1,3 milhão de pessoas. Para se ter uma ideia, seria preciso multiplicar a população de Serra da Saudade por 1.600 para conseguir lotar as areias de Copacabana. No entanto, em extensão territorial, a cidade na região central de Minas tem números de metrópole – 335 quilômetros quadrados, quase o mesmo que Belo Horizonte. Mas na capital mineira são quase 7.200 habitantes por km², enquanto esse número em Serra cai para menos de três.

A história da cidade, como de muitos outros povoados da primeira metade do século passado, passa pela linha do trem e o desenvolvimento e o progresso trazidos por ela. Na década de 20, a construção da estrada de ferro e a inauguração da estação ferroviária trouxeram moradores e movimento à região, com a instalação de casas comerciais e restaurantes – e a cidade foi crescendo e novas ruas ganharam vida ao redor da praça. As décadas seguintes foram movimentadas, de muito comércio e festas. Em 1963, num primeiro de março, foi fundada a prefeitura da cidade e, em agosto do mesmo ano, Serra da Saudade deixou de pertencer a Dores do Indaiá e ganhou status de município. Com a construção da BR-262, o intenso movimento teve uma importante redução, até que em 1969 a ferrovia teve seus trilhos arrancados. O que, de certa forma, fez com que o lugar se tornasse, para sempre, um paraíso de ares tranquilos encravado ao pé da serra.

A cidade e seus personagens
Seu Odilon Costa ainda se lembra de quando chegou a Serra da Saudade, há 65 anos. “Aqui na praça passava a ferrovia. Era muito movimentado, transporte em carro de boi.” Foi nos bailes dessa mesma praça que Odilon conheceu a esposa, falecida há quase sete anos. 

Recentemente, ele teve um infarto. Contrariando as expectativas médicas, sobreviveu e, sentado na varanda de sua casa, aos 86 anos, visita o passado como se pudesse ainda dançar pela primeira vez com a mulher que foi sua companheira por 52 anos. “Ela agradou de mim, eu agradei dela. Começamos a namorar e acabamos casando. É o destino, né sô?”. 

Viver arrependido é o destino de Zé Sinhorio. De família nobre, moço trabalhador, rico, solteiro, Sinhorio teve uma vida de rei. “Fazenda grande, comprava muito boi”, lembra. Foi muito namorador, só moça boa, ele diz. Sinhorio, por ciúmes, matou duas mulheres em 1963. Um ano depois, foi preso. Ele diz que foi bem tratado nos 10 anos em que ficou na cadeia. Mas a lembrança daqueles tiros sempre lhe acompanhará. “Gostava demais delas. A gente fica pensando, vou esquecer, já passou... Mas não esquece. Pedir a Deus para dar um bom lugar pra gente, sem Deus a gente não vale nada.” 

E hoje, na casa de um cômodo aonde mora sozinho, próxima ao cemitério, ele vai se deitar pensando no que fez, tendo as estrelas que cintilam no céu de Serra da Saudade como confidentes. 

Jair José de Sousa, de 76 anos – embora sua esposa jure de pé junto que ele tem bem menos –, mora em Serra há 35. Vive com a esposa e o caçula dos quatro filhos numa casa perto da praça. Um quadro de Ayrton Senna e outro de Santo Expedito decoram a parede da sala. Goiano, como é conhecido, gosta de andar por aí assobiando e cantando. Vai à praça conversar com os amigos, por lá toma um refrigerante. “A cervejinha também tem seu lugar”, ri. 

A fala cantada, mansa guarda nesse senhor a nostalgia, e quando ele fala, a lágrima parece irremediável. Ele se alegra e sorri quando diz que gosta de cantar música sertaneja, fumar um cigarrinho. E tem saudade do tempo em que podia trabalhar. “Hoje tenho vontade de trabalhar, mas por problema de coluna não dá, isso judia demais da gente”.

Os olhos de Beatriz brilham quando fala do futuro. Ela faz faculdade de nutrição em Bom Despacho, a uma hora e meia de ônibus de Serra da Saudade – ela até leva travesseiro para a outra uma hora e meia de volta, já no fim da noite. Beatriz gosta muito de Serra da Saudade, mas, como toda jovem de 22 anos, ela tem sonhos e faz planos: quer se formar no fim do ano que vem e se mudar para uma cidade maior, com mais possibilidades. “Meu sonho é ser totalmente independente, estudo para isso. Minha independência é o que eu mais quero”, diz. Na menor cidade de Minas, o que não podia faltar também é o famoso disse-me-disse. “Um pouquinho de fofoca tem. Todo mundo fala um pouco da vida do outro”, confessa.

A impressão que se tem é que as coisas realmente funcionam em Serra da Saudade. O centro cultural oferece curso de informática, aulas de dança, sem nenhum custo para os moradores, que também têm um centro esportivo com quadras de futebol e de volêi de areia e duas piscinas. Todas as residências com computador recebem automaticamente acesso gratuito a internet, fornecido pela prefeitura desde janeiro de 2011. Serra da Saudade conta com uma creche e uma escola municipal, que funciona em dois turnos com ensino fundamental e médio e atende cerca de 200 alunos, que recebem café da manhã, almoço e lanche. Trinta e cinco por cento dos estudantes vêm da zona rural. 

Engana-se quem imagina que a menor de cidade de Minas está no meio do nada, longe das parafernálias tecnológicas. Fernando, de 11 anos, tem Orkut, Facebook, Twitter, MSN e e-mail e fala com a naturalidade de quem vê nisso pouca novidade. O amigo Vinícius, da mesma idade, tímido num primeiro momento, se apressa em dizer que só não tem Twitter.

Em Serra da Saudade, é possível fazer coisas que seriam loucura na cidade grande – dormir com a casa aberta, por exemplo. Violência é um mal do qual Serra da Saudade não sofre. Há mais de 20 anos não se tem notícia de homicídio na cidade. As pouquíssimas ocorrências que o cabo da Polícia Militar Carlos Júnior registrou foram de furtos corriqueiros – e nenhum assalto nesses quatro anos em que está na cidade. E ele não pretende se mudar tão cedo. 

Apesar de sentir muito a falta do marido, falecido há menos de um ano, Dona Diná só tem boas lembranças das quase quatro décadas em que mora na cidade. “Fui muito feliz aqui. Lembro com muito carinho de todas as fases que vivi aqui. Muitas festas, muitas coisas bonitas que passei”, conta. Quando chegou em Serra da Saudade, naquele 22 de maio de 1976, a estrada de ferro não mais existia. “A cidade já era um cantinho sossegado. As ruas não eram asfaltadas, era tudo mais simples. Tem melhorado muito”, diz. “Serra da Saudade mudou muito, ficou bonita. Mas a população não cresceu não, sô”, diz Valdemar Cardoso, que chegou há 20 anos “já querendo descansar”. O fato de todo mundo da cidade se conhecer, para Dona Diná, torna Serra da Saudade um lugar especial: “É como se a gente fosse uma única família”.

Estranhos na noite

Obviamente, sabiam que havia dois desconhecidos na cidade. Já tínhamos sido vistos caminhando, conversando com os moradores, tirando fotos e, quando a fome apertou, lanchando na única padaria de Serra da Saudade. E já sabíamos que para passar a noite era preciso ir à casa de Dona Lia, uma senhora que nos alugou um quarto simples, porém aconchegante. Evangélica, ela disse que não participaria da quadrilha na praça, no dia seguinte. Nem vai passar perto, garantiu. O neto de Dona Lia comia uma linguiça da roça com vontade. Ele tem quatro anos – com uma cara invocada, andava de bicicleta com as rodinhas bambas. A noite de Serra da Saudade pediu algumas cervejas e uma prosa no bar de Seu Donizete, umas partida de sinuca com o Daniel e duas boas rodadas de frango frito no boteco do Zé Preto. Os cachorros se amontoaram e disputaram os ossos. A mesma lua que já iluminou a mansão de Jay Gatsby brilhava e a fumaça do cigarro se espalhava lentamente pelo ar. Era hora de dormir. 

Os meninos Fernando e Vinícius falaram algo sobre uma história que aconteceu há muitos anos. Em Serra da Saudade, todo mundo conhece o “causo” do menino que entregava marmitas para os trabalhadores do túnel.  As lembranças de Zé Gomes, de 76 anos, reviram o passado, “quando o pau quebrava mesmo nas festas”. “Deve ter sido em 1948, mais ou menos. Contavam que ele era carregador de bóia para a turma. Ele ‘lá ia’ com as marmitas e caiu um dreno na cabeça. Ele era novo, rapazinho. Tem a cruz lá para ele”, diz, referindo-se ao símbolo no local de sua morte. Tem a história da Balofa também, uma mulher que morava ali, aponta Zé para a rua à direita da praça. Segundo a lenda, ela bebeu veneno e se afogou dentro de uma gruta na região, em 1940 e poucos, não se sabe ao certo. Fantasmas não assuntam Zé Gomes. “O povo contava isso, que ali naquela curva aparecia assombração, mas nunca vi isso não”, ri, dizendo que mora sozinho e nunca viu nada.

Outra lenda explica o nome da cidade. Contam que no século 18, uma tribo de índios vivia ali. Por motivos desconhecidos, a tribo foi dizimada, restando apenas uma sobrevivente, que vivia em completa solidão. Certa feita, parentes que moravam na Bahia lhe escreveram uma carta – naquela época o transporte era lento e improvisado. Muito tempo depois, a carta chegou, mas a índia já havia falecido. Os moradores, então, abriram a carta, um tanto danificada, com uma única palavra legível: saudade. 

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