terça-feira, 17 de abril de 2012

AS ESCOLHAS DE TANCREDO




Com a proximidade de todo 21 de abril, é inevitável que meus olhos e meu coração pousem nos dias, noites e madrugadas que, há 27 anos, antecederam a mesma data.
As circunstâncias e a forte emoção que envolveram a morte do presidente Tancredo, fazem com que aqueles dias ainda estejam próximos de muitos de nós.
É difícil quando toda a História é apenas uma meia História …
É sempre bom lembrar que, diferente de ações menores, o destino da ação política que merece esse nome, é se transformar em História.
Em  2010,  na Câmara Municipal de Belo Horizonte, tive a oportunidade de reviver momentos importantes da nossa História, através dos passos de Tancredo.
Veja o que eu falei naquela ocasião:
 Meus amigos.
Antes de mais nada, agradeço, em nome de toda a minha família, a homenagem que a Câmara de Vereadores de Belo Horizonte presta hoje ao Presidente Tancredo Neves, no ano de seu centenário.
Pensei muito em quais deveriam ser as minhas palavras que escolhi deixar aqui hoje.
Eu poderia falar da biografia do presidente Tancredo.
Poderia falar do promotor, do vereador, do deputado estadual, deputado federal, senador, governador, presidente eleito do Brasil.
Poderia falar do grande líder.  Poderia falar do homem que, em silêncio, nos relembrou uma antiga, verdadeira e valiosa lição: a de que existem causas que valem mais que nós mesmos.
Poderia falar da sua biografia formal e talvez até pudesse relatar algumas passagens da sua vida que sejam desconhecidas para alguns dos senhores.
Mas não são essas as palavras que optei por deixar com os senhores essa noite. Não vou me ater à biografia formal do Presidente.
Em homenagem a ele, vou falar de escolhas.
Porque foram as escolhas que Tancredo fez ao longo da sua vida que o transformaram no homem que ele foi: um homem capaz de liderar multidões e enternecer indivíduos.
Como são as escolhas que nós fazemos no nosso dia a dia que nos fazem crescer ou diminuir diante de nós mesmos.
Dizem que os verdadeiros líderes são raros. Porque são poucos os homens capazes de se fundir e se confundir, em determinado momento da História com o seu próprio povo.
São poucos os homens capazes de serem depositários da confiança e dos anseios da sua gente.
Dizem que os líderes são fundamentais na História das civilizações não apenas pelo que eles são capazes de representar e pelas decisões que são capazes de tomar.
Eles são fundamentais porque são reflexo da sua gente. E, por isso nos permitem ser melhores, maiores. Eles nos fazem mais fortes.
Os verdadeiros líderes tornam seu povo melhor e, por isso, tornam o mundo melhor.
Tancredo foi um líder.
Por ser um líder fez as escolhas que fez. E as escolhas que fez fizeram dele um líder maior.
À primeira vista, parecem existir dois Tancredos.
Um, extremamente ameno no trato e nas palavras. Outro, corajosamente radical nas ações e nos gestos.
A fusão dos dois fez um homem por inteiro. Comprometido, sempre, com a ordem democrática. Absolutamente leal aos companheiros, honrando a palavra que empenhava, transformou-se num interlocutor confiável na cena política durante décadas.
E, surpreendentemente, nunca buscava os holofotes.
Tancredo de Almeida Neves, cujo centenário de nascimento e a lembrança dos 25 anos de sua morte se dão neste 2010, está entre os atores políticos de maior relevância no Brasil da segunda metade do século 20, bem como entre os que mais foram corajosamente coerentes.
Ele costumava dizer: “Na política, só se lembram de mim na hora da tempestade”. Era verdade. Tancredo assumiu lugar de importância nacional em 1953. Com apenas 43 anos de idade, foi escolhido pelo presidente Getúlio Vargas como ministro da Justiça, considerada a pasta mais importante da época. Havia sido opositor do Estado Novo, advogara para trabalhadores e chegou a ser preso duas vezes no período. Mas considerava que Getulio, ao ser eleito, ganhara legitimidade popular.
Foi fiel ao presidente Vargas até o seu último instante. Em 1954, na última reunião do Ministério, quando os ministros militares diziam ser impossível enfrentar o golpe que se anunciava e pediam o afastamento do presidente, Tancredo se ofereceu para ir pessoalmente dar voz de prisão aos rebelados. “Mas você pode ser morto”, disse um deles. “A vida nos reserva poucas oportunidades de morreremos por uma boa causa”, respondeu.
Tancredo costumava se lembrar da última noite de Getúlio com emoção.
Sempre dizia que não conhecera ninguém em quem o senso de dever e o amor ao país fossem tão fortes. Lembrava da noite em que já se preparava para  sair do Palácio do Catete quando o Presidente Vargas o chamou e lhe entregou a sua caneta pessoal, com a qual teria assinado a sua Carta Testamento. “Uma lembrança desses dias conturbados”, disse ele. Tancredo guardou a lembrança e quando saía do prédio escutou o tiro com que o presidente se suicidara. Correu aos aposentos dele e ajudou a filha dele, Alzira, a socorrer o pai.
Dizia que os olhos do presidente circularam pelo quarto, passaram pelos dele até se fixarem nos da filha. Ele morreu olhando para ela.
Extremamente abalado, Tancredo chegou para o enterro do presidente Vargas em São Borja, no Rio Grande do Sul. Fazia muito frio. Oswaldo Aranha lhe emprestou um cachecol que ele guardou, dobrado, na sua gaveta de objetos pessoais por toda a vida. De São Borja, enviou um telegrama ao então governador de Minas, Juscelino Kubitschek, denunciando a ação das forças golpistas. Há quem pense que o suicídio de Getúlio tenha atrasado em 10 anos o golpe militar. 1964 poderia ter chegado em 1954.

Em 1961, a renúncia do presidente Jânio Quadros pegou o país de surpresa. O vice-presidente João Goulart se encontrava na China, e começaram as articulações para impedir a sua posse.
Tancredo divulga um manifesto à Nação pedindo respeito à ordem democrática e que fosse garantida a posse do vice- presidente. O ambiente se agrava. Prioritário naquele momento era garantir que o vice-presidente chegasse ao país e ao governo.
Diante da irredutibilidade de setores militares, surge a solução parlamentarista. Tancredo vai de avião ao encontro de Jango no Uruguai. Haviam sido, Tancredo e Jango, ministros de Getúlio. A confiança entre os dois havia sido selada na antecâmara de uma tragédia. Em um momento de crise, quando o caráter e a fibra de um homem não podem se ocultar atrás de discursos de conveniência.
Por isso era Tancredo – e não outro – que poderia ter entrado naquele avião. O vôo que iria construir as bases de uma travessia.
Há quem diga que naquele encontro teria ficado implícita a certeza de que a alma brasileira, se consultada, não trairia a sua tradição presidencialista. Importante naquele momento era garantir que o vice-presidente tomasse posse. Era evitar que 1964 chegasse em 1961. Jango tomou posse. Tancredo foi escolhido primeiro-ministro. Deixou o posto de chefe de governo em 1962 para disputar as eleições para a Câmara dos Deputados. Eleito, se transformou em líder do governo João Goulart na Câmara dos Deputados.

Chegou 1964. O presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, declara vaga a Presidência da República apesar do presidente João Goulart se encontrar em solo brasileiro. Diante de uma Casa silenciosamente acovardada, escutam-se algumas vozes e gritos inconformados no plenário. Quem ouvir com atenção o áudio da sessão vai escutar nesses gritos, as vozes da consciência nacional. Entre elas, a de Tacredo.
Ouça aqui o áudio da sessão do Congresso Nacional: http://migre.me/8HYwp
Naquela época, também deputado, Almino Afonso conta: “Até hoje me recordo com espanto do deputado Tancredo Neves, em protestos de uma violência verbal inacreditável para quantos, acostumados à sua elegância no trato, o vissem encarnando a revolta que sacudia a consciência democrática do país. Não deixava de ser chocante ver a altivez da indignação de Tancredo e o silêncio conivente de muitas lideranças do PSD”.
O jornalista José Augusto Ribeiro diz que, ao sair dessa sessão, o indignado Tancredo deu uma entrevista: “Acabam de entregar o Brasil a 20 anos de ditadura militar!”. Tancredo enfrentou soldados para se despedir pessoalmente de Jango.
E 1964, adiado tantas vezes, finalmente chegou. O primeiro momento, fortemente simbólico, foi a eleição do Marechal Castelo Branco. Em toda a bancada do PSD, apenas dois deputados negam o seu voto ao Marechal. Tancredo foi um deles.
Vieram as cassações. Os inquéritos policiais militares. Nem os ex-presidentes são poupados. Juscelino foi convocado a depor. Não foi sozinho. Tancredo o acompanhou aos depoimentos. Solidário.

Exilado, o talvez mais festejado Presidente que o país já tivera, se dirigiu ao aeroporto para deixar o Brasil. Era o ex-presidente bossa nova. Era um ex-presidente da República que seguia rumo ao exílio.
Três pessoas acompanharam JK até o avião. Duas eram da família. A outra era Tancredo. “Me lembro que a sua foi a última mão que apertei antes de deixar o Brasil !”, disse Juscelino na primeira carta enviada a Tancredo do exílio.
São anos de um paciente ostracismo para Tancredo.
Morre o presidente João Goulart no Uruguai. O governo militar, a princípio, se recusa a permitir que ele fosse enterrado no Brasil.
Começam diversas articulações. Tancredo recusa conselhos e vai ao general Golbery do Couto e Silva: “Ninguém pode negar a um presidente o direito de descansar entre o seu povo!”, disse ele ao general. E, quando a conveniência indicava, de novo, o contrário, lá estava Tancredo, de novo, em São Borja. Mais uma vez, a memória de Almino Afonso: “Era a única liderança de porte nacional presente no cemitério”.
Morre Juscelino. De pé, Tancredo velou o presidente. É de Tancredo o mais forte e emocionado discurso de homenagem ao ex-presidente.
Trinta anos depois de 1954, é a vez de 1984. A campanha da Diretas Já ocupou as ruas e o coração do país. Tancredo participou, articulou, discursou. Mas conhecia a História. Ali, estavam maduras as condições para deixar 64 para trás. Ideal que fosse pelo voto direto. Se não pudesse ser, que fosse por outro caminho. Importante era abrir a porta de saída do regime autoritário. A porta, que ele ajudou a não deixar que fosse aberta em 1954 e em 1961, precisava agora ser fechada.
De novo, era ele que precisava tomar aquele avião e construir uma nova travessia. Do ponto de vista da História, Tancredo estava pronto. Tinha que ser ele. Era o que se costumava ouvir dos analistas mais experientes. “Essa foi a última eleição indireta desse país”, foram as primeiras palavras do seu discurso como presidente eleito.
Getúlio, Juscelino e Jango sabiam do que ele estava falando. Sabiam o que havia custado chegar até ali.  Saberiam o que ainda ia custar?
O avião decolou novamente. Desta vez o piloto não desembarcou. Mas conduziu o vôo a um pouso seguro.
Afonso Arinos disse: “alguns homens dão a vida pelo país. Tancredo deu mais, deu a morte.”
Me lembro dos olhos marejados de Tancredo relembrando com respeito e reconhecimento o gesto extremado de Getúlio. O extremado senso de compromisso de Getúlio com o país.
“Ele sabia o que estava em risco. Por isso não teve escolha”, costumava dizer. “Vocês não imaginam o que foi a multidão que acompanhou o funeral do Presidente”.
Foi ela, em torno do caixão do presidente Vargas que selou o pacto que impediu, naquele momento, o retrocesso da ordem democrática”, insistia em nos explicar.
Destino?
Mal sabia Tancredo que 31 anos depois, um outro Presidente envolto em profundo amor pelo Brasil e sabendo o que estava em risco, também não teria escolha.
Mal sabia ele que 31 anos depois, em 1985, uma outra multidão, em torno de um outro caixão, velaria o corpo de um outro Presidente.
E que ele também deixaria a vida para entrar na História.
Escolhas.
Disso é feito a nossa vida. Que possamos sempre nos orgulhar das nossas.


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