Com 95 anos, moradora do Bairro São Marcos é
solteira, sem filhos ou sobrinhos, mas nunca está sozinha. São os amigos
que ajudam nas tarefas de casa e lhe dão carinho
Solidão é palavra que nunca existiu na vida de Maria de Lourdes Pereira
de Jesus – ainda mais agora, na plenitude dos 95 anos. Mesmo solteira,
sem filhos e sobrinhos ou alguém próximo que carregue o seu sobrenome,
ela vive com a casa cheia, tem sempre alguém para fazer as compras,
ajudar na limpeza doméstica, dar o remédio na hora certa, pagar as
contas no banco ou simplesmente bater um papo. Moradora do Bairro São
Marcos, na Região Nordeste, a aposentada, nascida numa fazenda em
Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri, e que chegou à capital aos “vinte e
poucos anos”, levanta as mãos para o céu e abre o sorriso ao se referir
aos vizinhos: “Eles são minha família. Nas minhas orações, peço a Deus
por todos, que nunca lhes falte o pão de cada dia”, afirma, rodeada de
afeto e consideração. E, claro, de muitas histórias. Com grande lucidez e
bom humor, dona Maria, como é conhecida, é também testemunha de outros
tempos de Belo Horizonte: “Era uma cidade sem ônibus, com jipes, bondes e
tranquilidade”.
Na sala da casa modesta, mas bem arrumada e com
quadros e imagens de santos, principalmente de São José, já que ela
nasceu no dia do santo, em 19 de março, dona Maria mostra que é vaidosa.
Na manhã de sábado, estava de unhas feitas, num tom lilás, cabelos bem
penteados e vestido colorido. Pela pontinha da barra da saia deu para
ver que usava anágua arrematada com renda bege claro. “Amo a vida e vou
passar dos 100 anos. Não há segredo para chegar a tanto, só quero mesmo é
saúde”, afirma, de mãos dadas com os gêmeos Luiz Carlos, técnico de
enfermagem, e Carlos Alberto Alves da Silva, estudante, de 27, que moram
em frente. Apoiada na bengala, conta que gostaria de subir e descer a
ladeira de sua rua, como fazia antes, sem medo de cair.
De uma
família de 13 irmãos, todos falecidos, dona Maria não voltou mais à
terra natal, pois sente muitas saudades dos pais, Ana e Joaquim. “Eles
morreram quando eu era jovem. Sofri tanto que ia ao cemitério, em
Teófilo Otoni, todos os dias, para acender velas. O que vou fazer lá sem
eles?”, pergunta com um sentimento tão profundo que a voz se cala para
dar espaço às lágrimas. Mas o carinho dos gêmeos fala mais alto e ela se
recompõe, lembrando-se da infância. “Papai era lavrador, adorava tocar
viola, trabalhava na fazenda do meu padrinho, Nascimento Neiva.
Vivíamos na roça, tomando banho de rio, colhendo frutas no pé e verduras
na horta, brincando sem perigo.”
Os anos se passaram e vieram
tempos mais difíceis. Com a perda dos pais, a menina Maria de Lourdes
foi trabalhar em casa de família, até que chegou a Belo Horizonte, no
fim da década de 1930, acompanhando a conterrânea Alda Figueiredo,
mulher de dono de farmácia. Famosa no passado pelo clima favorável a
quem tinha problemas pulmonares e respiratórios, a capital foi indicada
ao casal, na tentativa de ajudar a curar os sérios problemas de asma de
Alda. “Moramos na Rua Padre Marinho, no Bairro Santa Efigênia, por 10
anos. Depois que dona Alda morreu, fui morar na casa das cunhadas dela,
no Bairro Padre Eustáquio. Eu olhava as crianças, cozinhava, fazia de
tudo. Hoje não tenho mais notícias deles. Os filhos dessas mulheres
viajaram para o Rio de Janeiro e São Paulo.”
JANELAS ABERTAS
Impressionante
ver que dona Maria tem memória prodigiosa, recorda-se de nomes inteiros
e datas. “Tem tanto para a gente lembrar…”, afirma, sem saudosismo. É
de meados do século passado que vêm as lembranças mais fortes de BH.
“Hoje, a cidade está estranha, com muitos carros. A violência tomou
conta. Antes não havia ladrão desse jeito. As pessoas podiam pôr as
cadeiras nas calçadas para conversar, e, nas noites de calor, as janelas
dos quartos ficavam abertas. Falta respeito.”
Trabalhar sim,
rezar mais ainda. Namorar, não. O certo mesmo é que não apareceu nenhum
pretendente para a moça do interior já bem adaptada à capital. “Nunca
namorei, nunca beijei. Beijo, só mesmo do papai”, conta dona Maria, que,
brincando, conta que é 100% virgem. “Casar não me fez a menor falta.
Sempre fui feliz e ainda tenho uma família grande. Marido para quê?”,
pergunta.
Ao lado, a professora Maria de Lourdes Dias Moreira
Batista, a Lourdinha, residente do outro lado da rua, conta que conhece
dona Maria desde garotinha. “Meu marido, Wilton, nossos filhos, Danilo,
de 21, e Danielly, de 20, e eu colocamos até uma janela estratégica para
ficarmos de olho e atentos. Se acontecer alguma coisa, temos que agir
rapidinho, pois ela mora sozinha. Wilton troca lâmpadas, conserta o
chuveiro, dá um jeito em tudo”, diz a xará, que se reveza com outras
vizinhas nas refeições e demais atividades. “Só mesmo quando dona Maria
está mais cansada é que trazemos comida. Geralmente, ela gosta de
cozinhar.” Luiz Carlos lembra que, por ser técnico de enfermagem, já
aplicou injeção na amiga, enquanto Carlos Alberto está sempre alerta no
período de chuvas. “Ela tem pavor a relâmpagos e tempestade de granizo.
Acho que é o único medo de dona Maria”, diz o estudante, lembrando que a
idosa é querida, pois faz o bem. “Há muitos velhos abandonados,
maltratados, sem ninguém. Temos prazer em estar ao lado dela.”
A
porta da casa está sempre aberta aos amigos, o telefone fica ao lado da
cama para as emergências. “A gente faz o que pode, pois é uma pessoa
ótima, de bom coração, que se preocupa com as famílias e com nossos
filhos. Sempre ajudou todo mundo aqui da rua e vizinhança. Ela merece
nosso carinho”, diz a dona de casa Sílvia Maria da Silva, mãe de Cirineu
Fabrício e Diego, encarregada de dar os remédios, atualmente reduzidos
aos de pressão, colesterol e cálcio. A declaração de Sílvia tem o aval
das amigas Mariana Gomes Barros, natural de Itambacuri, Jaci Rosa
Rodrigues, que a visita sempre com os bisnetos Samuel, de 5, e Sara, de
3, do casal José Maria Alves da Silva (que considera um “anjo da
guarda”) e Gláucia Grigório, presentes com as filhas Lavínia e Larissa, e
Gleice Maria de Castro. “De vez em quando ela puxa até nossa orelha se
bobearmos na educação dos filhos e netos”, confessa Jaci Rosa.
Religiosa e festeira
“Quem
planta colhe”, resume Maria de Lourdes Ferreira, de 82 anos. Essa outra
xará tem uma característica: foi escolhida para ser madrinha de crisma
de dona Maria. Quando entra pela porta, a afilhada diz imediatamente
“‘bença’, madrinha”. Nesse momento, a senhora de 95 anos e sete meses
conta que foi registrada já bem adulta, depois que o batistério foi
localizado pelo ex-patrão Geraldo Pereira, na Igreja do Bom Jesus, em
Teófilo Otoni.
Pelo visto, são muitas as Maria de Lourdes em
volta da mulher, nascida em 1917, que recebe aposentadoria por invalidez
(problema de coluna) e tem usufruto da casa, deixada por seus antigos
patrões Geraldo Pereira e Irene. “Neste bairro havia um sítio deles.
Eles me deixaram viver aqui nesta casinha até o fim dos meus dias”,
lembra dona Maria, que morou com os patrões por alguns anos em Morro
Vermelho, em Caeté, na Grande BH, lugar do qual tem as melhores
lembranças.
A casa da Rua Calvário, no São Marcos, tem quintal
com árvores frutíferas, folhagens e uma mesa sob uma coberta que lembra
um altar. “Trata-se de uma pessoa católica, de fé imensa em Deus, em
Nossa Senhora Aparecida e em São José, que vai à missa na Igreja de São
Benedito, na Paróquia de São Marcos, e às festas afro”, conta Lurdinha. A
referência a São José é a deixa para os gêmeos falarem que o
aniversário é supercomemorado. “Eu bebo até um pouquinho de vinho”,
confessa dona Maria, marcando a dose na metade do dedo indicador.
“Considero todo mundo filho e neto”, orgulha-se, com ares de matriarca.
E
os planos para o futuro? Sem titubear, dona Maria avisa que deseja ter
forças. “Viver é bom. Viver é bom, até o dia que Deus quiser. A melhor
hora do dia é quando acordo e abro os olhos. Por isso, não gosto muito
do quarto, prefiro a cozinha.” Mas sonhos sempre existem e a idosa
revela o seu: “Quero muito conhecer o nosso arcebispo dom Walmor. Ele é
bonito. Seria uma honra recebê-lo em minha casa.” A admiração é tanta
que dona Maria mantém um quadro com o retrato do arcebispo na sala e faz
questão de posar, junto com Luiz Carlos e Carlos Alberto, sob a foto do
chefe da Cúria.